A recente polémica à volta dos erros ortográficos e aritméticos nas provas de aferição do 4.º e 6.º anos mostrou algumas das origens da nossa catástrofe educativa (porque, vale a pena lembrar, vivemos uma catástrofe educativa). Em declarações à agência Lusa (29/05/2007, 14.39), o responsável do ministério, desmentindo "liminarmente" a acusação de não se ligar aos erros, explicou: "Não faz sentido penalizar a incorrecção ortográfica na primeira parte, quando o que se pretende perceber é se o aluno compreendeu ou não o texto." Esta indignação é o elemento mais revelador do caso. O ministério gasta um dinheirão num exame nacional a fingir, pois as notas não contam para os alunos. Depois, desperdiça a informação recolhida, omitindo um aspecto quando avalia outro. Finalmente, considera tudo isto como "técnica de avaliação". Talvez daqui a anos, quando estes jovens escreverem mal um relatório que mandam ao patrão, se justifiquem dizendo que não é a sua ortografia que está a ser avaliada. Como é possível pessoas inteligentes dizerem tais disparates? Este mistério conduz-nos a um dos problemas mais sérios da essência da educação: a relação com a realidade. Porque atitudes dos responsáveis que parecem delirantes e alheias ao senso comum resultam não de erros burocráticos pontuais mas da própria natureza do sector. Todas as actividade têm contactos contínuos com o mundo concreto. As empresas confrontam-se com o mercado, o sector da saúde depende do físico do doente, a polícia, diplomacia, tribunais lidam com problemas práticos. Até a política vive de eleições e manifestações. A educação é uma das poucas áreas que só dependem de si mesmas. A sala de aula é autónoma face à realidade e o sucesso final determina-se apenas pela pauta do próprio professor. É verdade que a matéria a ensinar nasce do mundo autêntico. Mas ele é filtrado pelo mestre, que constrói descrições, explicações, elaborações ou mitificações da realidade, com o propósito de compreender o existente e assim formar o estudante. As teorias são sempre abstracções e o estudo, razoável ou mirabolante, brilhante ou bruto, nunca deixa de ser limitado por si mesmo. Até quando realiza uma visita à realidade, a aula cria uma ficção pedagógica. A escola determina-se a si própria. Haverá no fim um teste real, a capacidade posterior do graduado em enfrentar o mundo. Mas, em geral, é difícil ligar isso à eficácia concreta do ensino e do mestre, porque o estudante, mesmo aprovado, pode ser burro. Até hoje, quando os sinais de falhanço na formação dos nossos cidadãos e trabalhadores são esmagadores, as escolas continuam impunes e sem responsabilidades assacadas no descalabro. Pelo contrário, até ganham mais meios para perpetuar a situação. Esta auto-suficiência conceptual da educação é a principal chave para as causas da derrocada. O ensino constitui um mundo isolado, com regras próprias, onde se pode funcionar longamente sem contacto ou relação com a realidade concreta. Qualquer parvoíce pode surgir como "método pedagógico" e, se abstrusa, até ganha excelência, pois as teorias educacionais já justificaram tudo e o seu contrário. O Ministério da Educação português é um bom exemplo de como um sistema autodeterminado pode disparar em sentidos impenetráveis e incoerentes. A sucessão de repetidas reformas, mesmo que justificadas individualmente, criou um conjunto inconsistente e delirante, que hoje até gasta fortunas em testes a fingir, que avaliam aos bochechos. A coisa só não é pior devido à única inelutável realidade que se impõe na sala de aula: a cara do aluno. Muitos profissionais competentes, sentindo-se responsáveis perante a turma que enfrentam, esforçam-se por ensinar alguma coisa às pobres cobaias das reformas, muitas vezes contra as mesmas reformas. Se não fosse isso, a catástrofe seria definitiva. Mas o Ministério da Educação tem de ser incluído entre os maiores inimigos do desenvolvimento nacional. Uma potência estrangeira que quisesse sabotar o nosso progresso dificilmente faria pior.
João César das Neves
Professor universitário
DN 25-06-07
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